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Continuação da história do NAeL Minas Gerais, do livro "Estórias Navais Brasileiras".
... e depois para o ar
A nossa maior preocupação, contudo, prendia-se às Provas de Vôo, pois nelas não só iríamos testar equipamentos até então desconhecidos, como também experimentaríamos o pessoal em funções, no convés de vôo, que constituíam absoluta novidade para a Marinha.
Já de há muito vínhamos preparando os homens responsáveis pelas atividades aéreas. A guarnição da catapulta - o mais delicado e responsável dos equipamentos - começou o adestramento nos Estados Unidos e continuou na Inglaterra, por mais de um ano.
A turma de manobra das aeronaves seguiu curso intenso a Marinha Inglesa e, depois, prosseguiu o treinamento a bordo orientando e abastecendo o helicópteros e aviões de ataque, inutilizados para o vôo, que a Marinha holandesa nos cedeu, e cujos motores foram ajustados exclusivamente para taxiar no convés.
E a superestrutura do Minas coloriu-se de camisas amarelas, vermelhas, verdes, marrons, com aqueles que as vestiam bracejando, num balé exótico, e seus braços abertos, com gestos convidativos aos aviões, tanto que receberam logo o apelido de Jesus está chamando.
Um esquadrão inglês especializado em testes incluindo aviões Garret e jatos Hawks - Trial Group - foi contratado. As provas seriam em fins de outubro, mas em agosto tivemos que nos deslocar para Londres - eu, os chefes dos Departamentos de Operações e de Aviação e oficiais das Divisões do Convés de Vôo, para os entendimentos preliminares.
Na minha geração, o Almirantado inglês representava o máximo em Marinha, infundindo-os grande respeito, haurido em leituras que iam dos volumes de História Naval e Estratégia e Tática aos romances de Forester, descrevendo a carreira aventurosa do Almirante Hornblower nas guerras napoleônicas.
Iríamos no dia seguinte ter uma reunião neste respeitável Almirantado, e matutávamos no quarto do hotel como nos sairíamos na prova. A alguém ocorreu a idéia de se preparar um panfleto mimeografado no qual registraríamos, em inglês, as informações que possivelmente nos seriam pedidas e as perguntas que desejávamos fazer, havendo espaços em branco para as anotações. Demos uma virada, os escreventes do adido naval nos auxiliaram e, pela madrugada, o folheto estava pronto.
Os corredores que percorremos no Almirantado e a sala de reuniões, devo confessar, não foram de molde a nos infundir muito respeito. Eram porões, com tubulações de aquecimento e fiação elétrica à mostra. Rodeamos uma mesa, nós e os ingleses liderados pelo capitão-de-fragata comandante da Trial Group e ficamos calados, cada um esperando que o outro desse o ponta-pé inicial da peleja. Como a coisa não se decidia, timidamente apresentamos o nosso folheto... que foi recebido com entusiasmo, porque eles também não sabiam como começar.
Em seguida, sem falsas modéstias, nós todos falando em inglês, conhecendo muito bem as nossas funções e os equipamentos que nos cabia operar, suas possibilidades e limitações, impusemo-nos e obtivemos com isto um clima de confiança que se manteve até o fim das provas.
Terminamos por marcar para as sete horas da manhã de determinado dia, três meses depois, a nossa chegada a Portsmouth. Nesta hora, exatamente, largamos ferro em Spit-Head, fundeadouro que nos avocava as aventuras nelsonianas, que todas ali começavam ou acabavam.
Um capitão-de-corveta da Royal Navy apresentou-se à nossa disposição e comunicou-me que naquele dia, às onze horas em ponto, o Comander in Chief - Portsmouth, a quem ficaríamos subordinados, me receberia. E ficou o uniforme, disse que bebidas me seriam oferecidas e informou-se que, findo 15 minutos, esperavam que eu me despedisse.
Às cinco para onze estávamos alí no hall do edifício do Comando, mas ficamos passeando diante da porta do gabinete do almirante até a hora exata da apresentação. E imaginava o meu visitado de pé atrás da porta, da mesma forma escravo da pontualidade inglesa - o que se confirmou, na última badalada das onze, os batentes se abriram e um homenzarrão de dois metros de altura e meio metro de barbas brancas - assemelhava-se com o Almirante Barroso sobre a caixa de rodas da Amazonas - apareceu, ereto, aguardando por mim... e pela hora.
Depois de cumprimentos formais, perguntou-me se eu era aviador. Ante a minha resposta negativa, abriram-se as comportas do que deveria ser reação de muitos anos de debates e discussões, nem sempre vitoriosos. Afirmou enfaticamente: "... no que vocês fazem muito bem. Os aviadores não entendem nada do emprego tático de uma unidade que é um todo - navio-base e os aviões. Só querem voar, só pensam nos aviões, os quais, sem o navio, não terão continuidade de ação necessária para serem úteis taticamente. Sou de comunicação e comandei NAes, comandei divisão de NAes, e acho que fiz melhor do que qualquer aviador..." E foi assim por diante. Findos os 15 minutos, fiz menção de me retirar, mas ele pulou por cima das próprias determinações e só depois de 50 minutos de diatribes contra os pilotos pude sair, chegando atrasadíssimo, furando completamente a celebrada pontualidade, a um almoço no NAe Victory, que iria operar conosco durante as provas.
Passamos dois dias recebendo material e pessoal, transportados por um navio de rodas, cuja caixa entrava por baixo da extremidade do convés em ângulo, permitindo boa atracação.
A saída para receber no mar os aviões do Trial Group estava marcada para às sete horas da manhã (parecia que tudo na Inglaterra devia ter início nesta hora). Mas amanhecemos imersos num nevoeiro leitoso, impedindo até de se avistar a proa. Entretanto, os postos foram tocados e o ferro começou a ser içado. O oficial de ligação veio afobado ao passadiço perguntando-me se iríamos suspender com aquela cerração. Tive o prazer de esnobar a Royal Navy, confiado na eficiência do Centro de Informações de Combate, dirigido pelo Capitão-de-Corveta Ricart, atual chefe do Estado-Maior da Armada. Respondi-lhe com ar de surpresa: "E por que não? Não vejo nenhuma dificuldade num nevoeirozinho..." O inglês olhou desconfiado para o south american (embora já tivesse confessado sua admiração pela ordem do navio e a eficácia com que se processado o embarque do Grupo Aéreo) e informou: "Mas os aviões com este tempo não conseguem decolar de sua base terrestre..." - "Bem, se é por causa dos aviões, aguardemos. Avise-me quando forem capazes de levantar vôo."
Quando por fim suspendemos, ainda navegamos todo o canal de acesso a Portsmouth às cegas, orientados pelo CIC. Aí foi o comandante do Grupo que veio elogiar o excelente trabalho de marinharia.
Recolhemos os aviões com o convés de vôo guarnecido pelos ingleses e passamos a tarde dirigindo-nos para Lime Bay, onde iríamos nos encontrar com o Victory e iniciarmos as operações aéreas. À noite houve uma reunião dos ingleses com os oficiais de operações e de aviação, para fixar detalhes das provas. As recomendações, principalmente sobre a eterna pontualidade, frisando que às sete horas em ponto (sempre às sete horas...) deveria estar o primeiro avião no convés, foram enfáticas e formais demais para o nosso gosto. E o Capitão-de-Fragata Jaime Leal da Costa Filho, chefe do Departamento de Aviação, resolveu fazer uma brincadeira para quebrar aquele gelo... e aquela pose.
Às sete horas exatamente, com toques, apitos e a buzina do elevador berrando estridentemente, apareceu no convés... uma miniatura de avião. O sense of humour inglês prevaleceu, houve uma risada geral e o ambiente de cordialidade que foi criado continuou durante todas as provas.
No primeiro dia, os ingleses permaneceram no convés e na torre de controle. No segundo, ainda de macacão, foram espectadores. No terceiro, nem mudaram de uniforme, deixando tudo nas nossas mãos.
Os pilotos eram excelentes, sendo capazes de pegar o cabo de parada que indicávamos para ser testado, decolando indiferentemente pela catapulta ou em corrida livre co habilidade surpreendente. Mas o que realmente emocionou-me, quase às lágrimas, foi ver os nossos alunos Antonio Maria da Conceição ou Jesus das Dores, nordestinos de 35º à sombra, quando há sombra, dirigirem e abastecerem os aviões, ou deitados segurando as escoras embaixo dos jatos rugindo, num convés varrido por ventos de 40 nós e com quase zero de temperatura, como se nunca tivessem feito outra coisa na vida, agindo com a simplicidade, frieza e a certeza de veteranos.
Como resultado disto tudo, tivemos o prazer, em jantar de despedida dos ingleses, de ouvir o Trial Group Comander, um ás de muitos anos de aviação, que tinha pertencido ao grupo aéreo Vengeance, afirmar que tinham vindo para bordo muito receosos. Afinal de contas iriam operar com um pessoal que nunca tinha visto um NAe antes. Mas agora podia afirmar que o Minas ombreava-se com os melhores NAes da Royal Navy e as operações realizadas só haviam apresentado um defeito: não se ter verificado nenhum incidente (e não diria acidente), o que não pensássemos ser normal.
Quando regressamos a Roterdã, o Minas era outro navio. Irreconhecível. Tinha recebido definitivamente a centelha de vida, tornara-se definitivamente um navio de guerra.
Continua...