Continuação da história do NAeL Minas Gerais, do livro "Estórias Navais Brasileiras".
Fomos para o mar...
Tudo o que se referia ao navio propriamente dito - casco, máquinas, equipamentos - havia sido recebido e testado à satisfação. A parte vinculada à aviação - convés de vôo, catapulta, cabos de parada, elevadores, etc. - estava ainda atrasada. Com apoio do Departamento Técnico, chefiado pelo Capitão-de-Mar-e-Guerra Arnaldo Januzzi, e seus engenheiros, Capitães-de-Fragata Paulo Ribas Ferreira, Decio Sinch e Paulo Vaz de Mello, e o Imediato Rezende, que se encarregava de adaptar a guarnição do navio, julguei que devíamos desde logo fazer as Provas de Mar, pois teríamos assim tempo de corrigir os defeitos que aparecessem antes das Provas De Vôo, quando tudo que se referia à base deveria estar perfeito.
Lamentavelmente houve alguma reação da parte dos oficiais do Departamento de Máquinas, que se apegaram a uma cláusula do contrato da obra que dizia deverem ser as Provas de Mar realizadas com o navio "pronto sob todos os aspectos". Mas resolvi endurecer, pois estava consciente - e comigo engenheiros da técnica e o imediato - de que seria extremamente útil a nossa ida para o mar naquele momento e que o navio em si mesmo estava "pronto sob todos os aspectos". A saída foi mantida, apesar dos avisos de temporal (storm warning) da Metereologia. E realmente a storm nos pegou, obrigando-nos a capear uma noite inteira - nós e muitos petroleiros -, principalmente porque não confiávamos nas peias provisórias que tinham sido colocadas para fixar ao convés um guindaste sob rodas de 35 toneladas, pois havia balanços de 25º.
Enquanto seguíamos pelo canal de Roterdã, com prático e seis rebocadores com cabos passados ao navio (embora não dissessem, as autoridades portuárias brincavam com a hipótese, por mais longínqua que fosse, de terem um encalhe obstruindo a veia jugular do comércio holandês), quando se quis utilizar as máquinas para auxiliar o seu giro, numa volta mais apertada, o Minas se portou de uma maneira muito esquisita.
Fomo adiante: o prático nos largou na barra, enfrentamos a entrada do navio em um corso de enormes barcos navegando com intervalos de 500 metros nas duas direções, e rumamos para Antuérpia, onde deveríamos correr na raia de ajustagem dos circuitos de neutralização magnética do casco (De Gaussing), pois o Mar do Norte ainda era considerado infestado de minas magnéticas. No fim de cada corrida precisávamos girar com as máquinas e o leme, pois o espaço era pequeno. Mas a manobra simplesmente não funcionou. Havia um completo desencontro entre a ação do leme e das hélices. Atribuí em parte esse fato à nossa inexperiência em operar um navio daquele porte. Usamos rebocadores para nos ajudar e voltamos para o mar. Dois dias depois, a mudança de uma lâmpada queimada do telégrafo das máquinas permitiu que se descobrisse que as suas ligações estavam trocadas. Quando dávamos ordem para a máquina de boreste, a de bombordo recebia-a e, o que era pior, acusava o recebimento da ordem omo se fosse a boreste. Daí a confusão que, felizmente, não ocorreu nenhuma situação marginal ou perigosa.
Isto e mai todas as válvulas de garganta (de ligação das caldeiras com as turbinas) avariadas - o navio entrou no porto a reboque - e o despalhetamento dos ventiladores dos exaustores das praças de caldeira, devido ao desenho defeituoso da caixa de exaustão ter criado uma sensível contrapressão, e outras falhas não tão importantes, mostraram o acerto da realização imediata das Provas de Mar. E também, acima de tudo, oficiais, suboficiais, sargentos e praças que isoladamente haviam sido enviados para Roterdã, transformavam-se em ma guarnição.
Quarenta e cinco dias depois, novamente cruzamos a barra para uma segunda Prova de Mar, a fim de testar a correção dos defeitos encontrados na primeira.
Desta vez não houve tropeços, e aproveitamos para determinar os chamados dados táticos do navio, isto é, raios, avanços e caimentos das curvas de giro em vários ângulos do leme, aceleração, desaceleração e as curvas de rotação x velocidades.
Para traçar essas últimas, precisávamos de uma milha medida e, estudando as cartas marítimas e roteiros, concluímos que a mais conveniente localizada era uma existente dentro de uma ria (um tipo de baía de barra ampla que se alonga vai fechando para o fundo) de Ferrol de Caudilho, no Norte da Espanha.
Entramos da ria e fundeamos em frente à cidade, aguardando o prático. Como este demorasse e, de acordo com a carta, o local da milha parecesse em ordem, resolvemos suspender e fazer as corridas sem ajuda. Já o ferro estava para arrancar quando interrompemos a manobra para aguardar uma lancha que se aproximava e sinalizava. Vinham nela um oficial de Marinha espanhola - que seria o ligação - e o esperado prático.
Quando lhes disse o que pretendia fazer, bradaram imediatamente: "Mas o senhor vai encalhar! O fundo da ria está assoreado e, por isto, mudamos a milha medida para fora da barra. A carta e o roteiro ainda não foram corrigidos." O hidrógrafo que existia em mim torceu o nariz ante este fracasso do Aviso aos Navegantes, mas o comandante respirou aliviado por ter escapado por um fio de um acidente naquela altura dos acontecimentos e de suas repercussões no Brasil, junto aos nossos inefáveis inimigos.
Corremos a milha e tudo de certo, obtendo-se maiores velocidades que as previstas. E divertimo-nos com o prático. Era um espanhol falador, de grandes gestos, e, via-se pelo amarelo dos dedos, dos dentes e do bigode, um fumante inveterado. Exatamente durante as corridas estava-se testando as canalizações de combustível de aviação e, à vista da possibilidade de se constatar escapamentos, proibia-se o fumo em todo o navio. E a ordem era repetida cada 15 minutos pelos alto-falantes, para não haver esquecimentos.
O fato de não puder fumar transformou o espanhol extrovertido e bem humorado em um ser desesperado e mudo, andando nervosamente pelo passadiço. E sua aflição explodia em altos brados quando era lembrado da proibição pelos avisos dos alto-falantes. Aí não se continha e berrava: "Y todavía hablan, y todavía hablan..."
No regresso para o porto, já agora calmo, com um cigarro ininterruptamente na boca, voltou à sua exuberância anterior. A barra estava praticamente obstruída por bacos de pesca e seus afazeres. A solução drástica que encontrou foi meter a proa no conglomerado e espalhar pescadores em todas as direções.
O que ele ouviu - revidando à altura - foi a maior coleção de palavrões que fá feriu nossos ouvidos, naquele tempo acostumados à discrição holandesa, ou talvez porque não compreendêssemos o que falavam. Mas agora entendíamos, e is impropérios espanhóis não seguem a regra inglesa definida pela classificação de four letters words. São frases inteiras que empregam, sofisticadas, imaginosas, envolvendo, numa mesma descompostura, a pessoa insultada, seus parentes (quanto mais próximos, melhor), amigos, hábitos, implicações genéticas, práticas infames. E aquilo saía em catapulta, subindo e descendo, dos barcos para o passadiço e do passadiço para os barcos. Espetáculo e vocabulário de causarem inveja às jeunes filles da atualidade, que são proficientes neste capítulo...
Dois incidentes de navegação nessa segunda Prova de Mar merecem um registro especial.
Navegávamos certa manhã nas proximidades das costas da Escócia. Tinha eu conseguido uma folga para um dos raríssimos cochilos que o tráfego intenso do Mar do Norte me permitia, quando o telefone ligado ao passadiço acordou-me, pedindo o meu comparecimento urgente. Encontrei o navio imerso na escuridão de um nevoeiro de visibilidade zero - e o mostrador do radar coalhado de alvo nos rodeando, os quais em marcha reduzida, driblávamos como podíamos. Com a vinda do sol, a névoa começou a elevar-se, e verificamos que tínhamos em volta perto de 30 pesqueiros... russos. Mas pesqueiros sofisticadíssimos, pois eram eriçados de antenas complicadas e os pescadores do convés nos apontavam máquinas fotográficas dotadas de tremendas teleobjetivas, com certeza destinadas a detectar e fotografar peixes... Tratamos de nos safar cuidadosamente, porque um abalroamento poderia significar o início da Terceira Guerra Mundial.
No regresso para Roterdã, ao atravessarmos o Canal da Mancha, começamos a interceptar uma séria de mensagens telegráficas e por elas ficamos sabendo que cruzávamos pelo meio de uma manobra da NATO, e os dois partidos se surpreenderam com o aparecimento de um NAe desconhecido na área. E especulavam-se se era um russo espionando e perturbando o exercício.
Durante o dia fomos freqüêntemente reconhecidos por aviões de patrulha Atlantique da Marinha Francesa, e à noite, nos entretivemos tentando iluminar o que, provavelmente, era uma formação de seis contratorpedeiros que apareciam no radar como se estivessem nos escoltando. Aproávamos repentinamente na sua direção, mas eles também estavam plotando nossos movimentos e logo, em manobra perfeita, afastavam-se, sempre se mantendo fora do alcance dos holofotes.